Aprender música significa conhecer o mundo através de outras estratégias e vias de compreensão, através do uso de uma linguagem própria que permite ao indivíduo interagir com o mundo, expressar-se e comunicar suas ideias e sentimentos, além de conhecer-se melhor. Rubem Alves, em seu livro “Educação dos sentidos e mais…”¹ utiliza uma imagem poética para explicar as duas tarefas com as quais deveríamos nos preocupar. Ele diz que o corpo carrega duas caixas: na mão direita, uma caixa de ferramentas e, na esquerda, uma caixa de brinquedos. A mão direita representa o trabalho, a destreza e a mão esquerda, o coração.
A caixa de ferramentas
As ferramentas são as melhorias e as extensões do corpo: diferentemente dos animais, cujos corpos lhes suprem as necessidades para sobrevivência, nós precisamos de ferramentas para melhor viver, como facas, flechas, enxadas, sapatos, canetas, óculos, computadores etc. Usando sua inteligência, o homem criou e cria ferramentas para transformar o mundo (para melhor ou pior…).
Além dos objetos, a caixa de ferramentas também contém as habilidades de falar, andar, construir, saber pensar, que devem ser transmitidas através das gerações.
Os primeiros educadores das crianças são os pais, que têm como tarefa entregar aos filhos a caixa de ferramentas que carregam consigo, para que as crianças não precisem pensar e criar novamente soluções já existente (reinventar a roda). Algumas destas ferramentas vão se tornando esquecidas com o tempo, pois perdem sua utilidade e, assim, são retiradas da caixa e substituídas por outras – quem, hoje em dia, por exemplo, sabe apontar lápis com canivete? Ou quem ainda acende lampiões na rua?
A caixa de brinquedos
A mão esquerda, a mão do coração, traz uma caixa cheia de coisas que não servem para nada, totalmente inúteis, como a “Apassionata” de Beethoven, um livro de poesias de Cecília Meireles, a “Valsinha” do Chico Buarque, um quadro de Monet, um perfume de flor, um riso de criança, uma caixa de lápis de cor… Coisas que não servem pra nada, mas que nos fazem sorrir! (ALVES, 2005, p. 12).
O filósofo e teólogo Santo Agostinho dizia que todas as coisas existentes se dividem em duas esferas: a do uti e a do frui, que respectivamente significam, em latim, “o que é útil, utilizável, utensílio”; e “fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma”.
As coisas que servem para serem usadas são as ferramentas que expandem o poder dos nossos corpos e sua finalidade deveria ser nos auxiliar a chegar às coisas que devem ser amadas. As coisas para ser fruídas são as que amamos e as que nos fazem felizes pelo valor delas mesmas, sem precisar de alguma utilidade imediata, elas não são ferramentas e não servem para nada.
A música, a poesia, a escultura, a pintura, a dança, o teatro, a arte, enfim, fazem parte das coisas da caixa de brinquedos. Observem que, nas línguas alemã e inglesa, existe uma única palavra para designar arte e brinquedo: spielen e play. Tocar piano – Klavier spielen; play the piano.
Em momentos como o que estamos passando, a “caixa de brinquedos” exerce um papel fundamental para o bem-estar emocional de todos nós e tocar um instrumento pode nos ajudar a lidar muito melhor com as tensões e angústias atuais.
Como já dizia o velho ditado “quem canta, seus males espanta” e quem toca, também.